Già varie volte in passato il sito brasiliano www.ihu.unisinos.br, espressione dell’Instituto Humanitas Unisinos – IHU di São Leopoldo-Porto Alegre, aveva manifestato attenzione per svariati miei scriti. Ora, a distanza di pochi giorni l’una dall’altra, ha proposto le traduzioni delle mie interviste a Maria Antonietta Calabrò e a Francesco Gnagni e di due recensioni del mio ultimo volume su papa Francesco, quella di Alessandro Banfi per il magazine Vita e quella di Riccardo Cristiano apparsa sul sito di informazione Formiche. Le riporto di seguito.
www.ihu.unisinos.br, 08 Abril 2021, Os três últimos papas em meio aos “teocons” (Maria Antonietta Calabrò)
A “crise da Igreja” vem perdurando nos últimos 25 anos. Há uma ideologia cristianista que pretende usar o altar para apoiar o trono.
A reportagem é de Maria Antonietta Calabrò, publicada por L’Huffington Post, 07-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto o Papa Francisco presidia a Liturgia da Paixão, na última Sexta Feira Santa, 2 de abril, o pregador da Casa Pontifícia convidou os bispos e todos os católicos a examinar suas consciências sobre as maneiras pelas quais eles podem prejudicar a unidade da Igreja Católica.
A proteção de Deus, disse ele, “não desculpa nossas divisões”, mas as torna ainda mais dignas de condenação e deveria inspirar maiores esforços para saná-las.
“A causa mais comum de duras divisões entre os católicos”, acrescentou ele de improviso, “não são os dogmas, nem os sacramentos e os ministérios, nenhuma das coisas que preservamos plena e universalmente pela graça singular de Deus”.
Em vez disso, afirmou, “as divisões que polarizam os católicos derivam de escolhas políticas que se transformam em ideologias que têm prioridade sobre as considerações religiosas e eclesiais e conduzem ao completo abandono do valor e do dever de obediência na Igreja”.
“Este é o pecado em seu sentido original”, afirmou Cantalamessa, nomeado por João Paulo II e elevado a cardeal por Francisco.
“Quando é dada prioridade ao apoio a candidatos, partidos ou políticas sobre a construção do reino de Deus e da unidade de seu corpo, a Igreja, é hora de um sério exame de consciência e de conversão”, concluiu.
Em aparência, o sermão da Sexta-feira Santa pode ter parecido excessivo, se não mesmo inapropriado em vista do dia, mas depois de três dias foi essencialmente “retomado” em uma entrevista à TV católica espanhola Cope pelo secretário de Estado, Pietro Parolin.
Mas se for lido atentamente o livro do professor Massimo Borghesi, Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e “ospedale da campo” (Francisco. A Igreja entre ideologia ‘teocon’ e ‘hospital de campanha’, em tradução livre), entender-se-á que Cantalamessa não exagerou em absoluto e que a “crise da Igreja” a que se referiu se prolongou nos últimos 25 anos e nos três últimos papados. Em todo caso, a partir da queda do Muro de Berlim, e desde a publicação da Centesimus Annus, a encíclica social de João Paulo II, até os primeiros vinte anos do terceiro milênio.
Trata-se de um fenômeno que começou de fato na fase final do pontificado do Papa polonês, atravessando com uma linha vermelha claramente visível (devidamente delineada por Borghesi em seu valor filosófico e teórico) que poderíamos definir aquela da manipulação “teocon” (conservadores católicos) da Igreja Católica.
Ou seja, uma ideologia cristianista voltada para usar o altar para apoiar o trono, ou seja, o poder político principalmente da direita estadunidense. Uma corrente de pensamento que teve protagonistas principais (de Michael Novack a George Weigel) e menores nos EUA. Na Itália, de Pera a Quagliariello e Gotti Tedeschi. E que tentou com sucesso de narração midiática se apropriar dos anos de Bento XVI, até que o idoso papa teólogo formalmente e por escrito tomou as distâncias dela (para além das relações pessoais).
Aliás, em certo sentido, Ratzinger também foi a primeira vítima, mas, no final, ele não se prestou. Tanto é verdade que os teocons, como Borghesi demonstrou, foram muito críticos com sua última encíclica, “Caritas in veritate“, aquela que, como escrevi no Huffpost, Ratzinger fez reler a Mario Draghi.
É uma tese exagerada? Talvez não seja tão arriscada, visto que uma figura que desempenhou um papel central em todos esses anos foi o Arcebispo Carlo Maria Viganò (por vinte anos e até 2009, Chefe de Gabinete da Secretaria de Estado, depois Núncio nos Estados Unidos, até 2016) e protagonista da crise final do pontificado de Bento XVI. Ele tentou se tornar Secretário de Estado no início do pontificado de Francisco (como se lia nas colunas do Corriere della Sera em 2013), para depois lançar um ataque sem precedentes contra ele a partir de agosto de 2018, encontrando o apoio de Steve Bannon e Donald Trump.
A eleição do católico Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos (um dem que paradoxalmente citou em seu discurso de posse uma citação de Santo Agostinho, caro a Ratzinger) virou o jogo nesta história, mas entender as linhas de interesses e de pensamento subjacentes à crise contínua da Igreja Católica (com seus escândalos financeiros e outros) é muito útil para entender o que aconteceu.
www.ihu.unisinos.br, 24 Março 2021, O caminho estreito de Francisco: uma teologia da libertação sem marxismo. Entrevista com Massimo Borghesi (Alessandro Banfi)
Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral em Perugia, na Itália, escreveu outro livro fundamental para compreender o pensamento e o pontificado do Papa Francisco. Depois do seu primeiro esforço publicado há quatro anos (“Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual”, Vozes, 2018), ele volta a oferecer pistas de reflexão muito interessantes, pela editora Jaca Book, com seu novo ensaio “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ‘ospedale da campo’” [Francisco. A Igreja entre a ideologia teoconservadora e o ‘hospital de campanha’, em tradução livre].
A reportagem é de Alessandro Banfi, publicado por Vita, 22-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trata-se de um volume repleto de ideias que, ao se aprofundar nas disputas da doutrina filosófica e teológica, está muito ligado a este momento particular da história. A reeleição perdida de Donald Trump para a Casa Branca, também pela incapacidade de gerir uma pandemia inesperada, abriu um cenário totalmente inédito também para a Igreja Católica.
Nesse novo livro de Borghesi, o papado de Roma, primeiro com João Paulo II e Bento XVI e depois principalmente com Francisco, é lido na perspectiva do debate intelectual e teológico norte-americano, desde a queda do Muro de Berlim. A partir dos supostos “vencedores” da Guerra Fria, que proclamaram “o fim da história”.
Na realidade, a história não acabou com aquele triunfo do dólar. Borghesi reconstrói as tentativas, sobretudo por meio do movimento teocon dos vários Novak, Weigel e Neuhaus, de hegemonizar e condicionar o catolicismo romano e até mesmo o papado. Lendo Borghesi, entendem-se as raízes dessa tentativa de “cisma estadunidense”. Um cisma que, de algum modo, encontrou uma afirmação clamorosa nos últimos anos.
De fato, nenhum papa de Roma jamais recebeu tantas críticas e tantas resistências de um episcopado inteiro, como Francisco teve que sofrer por parte dos bispos norte-americanos. Por que se produziu essa contraposição? Quais são os seus motivos de fundo?
No livro, Borghesi descobre e analisa uma rede de interpretações enganosas dos pontificados, começando pela evidente deturpação da encíclica Centesimus Annus, que realmente leva a refletir. Interpretações que também são construídas a partir de relações pessoais, entrelaçando biografias. Em certas fases, há intelectuais que nem são católicos, como o italiano Marcello Pera, que acabam aparecendo como exegetas do Santo Padre.
Eis a entrevista.
Comecemos imediatamente pelo Papa Francisco. Por que a sua linha de uma Igreja em saída, de hospital de campanha, é tão combatida pela hierarquia católica dos Estados Unidos?
A Igreja estadunidense, em grande medida, parece não ter as antenas para perceber a perspectiva de Francisco. E isso apesar de a viagem de Francisco aos Estados Unidos em 2015 ter corrido muito bem. Então, é preciso se perguntar: por quê? Por que uma parte do establishment católico estadunidense não tem as coordenadas para entender o papa? Depende de Bergoglio ou dos estadunidense? No meu livro, eu analiso os motivos dessa distância e as remeto à formação de uma ideologia católica conservadora, levada em frente por intelectuais como Novak, Neuhaus, Weigel, Sirico, que, no arco de 40 anos, desde a presidência Reagan, impôs-se no catolicismo estadunidense.
Trata-se de um “americanismo católico” que, na sua crítica ao progressismo dos anos 1970, desposa o modelo capitalista com as batalhas éticas contra a secularização, a apologia do mercado sem restrições e a luta contra o aborto, a eutanásia, o casamento gay. Nasce uma nova figura de católico, o “cristianista”, lucidamente diagnosticado por Lucio Brunelli em um artigo da revista Vita em 2001. Por isso, produz-se uma metamorfose do catolicismo que, de missionário e aberto ao diálogo, se torna identitário e conflitual; de social, torna-se eficientista e empresarial; de comunitário, torna-se individualista e burocrático; de pacífico, torna-se belicoso; de católico e universalista, torna-se ocidentalista. Trata-se de uma posição singular, que une o espírito militante e maniqueísta ao conformismo burguês.
Para essa posição, a linha do papa, expressada no seu manifesto Evangelii gaudium, parece hostil e incompreensível. Francisco questiona novamente os dois postulados da posição teocon: a agenda ética e a adesão ao capitalismo. Por um lado, ele pede aos católicos que saiam do gueto, da fortaleza em que se blindaram após a queda do comunismo. Pede-lhes que sujem as mãos, levem no coração o destino do mundo, levem a todos a mansa humanidade do Redentor, e isso não sob a insígnia das bandeiras guerreiras, mas através de gestos de ternura. Por outro lado, ele contesta duramente um modelo econômico, o da era da globalização, que, com a sua religião do mercado, aboliu laços e proteções sociais, rebaixou a classe média, criou milhões de novos pobres. Do ponto de vista dos intelectuais teocon, isso é inadmissível. A partir da sua reação, nasce a lenda do papa “vermelho”, peronista, populista.
Se os “norte-americanos” (Dom Viganò, ex-núncio, pediu a renúncia do papa) estão na vanguarda do ataque ao papa, há também alas progressistas que o criticam, segundo as quais o pontificado já estaria em declínio…
A crítica dos progressistas é mais recente. Nos últimos anos, eles o apoiaram pensando que ele iria “revolucionar” a Igreja. Ficaram decepcionados quando compreenderam que, em certos temas, este papa permanece firme na custódia da tradição. É o caso da ordenação de mulheres ou de homens casados. Os progressistas cometeram o mesmo erro que os tradicionalistas: imaginaram um papa que não existe. Francisco certamente não é um conservador, é um papa missionário e social: esta é a sua fisionomia. Os reacionários confundem com progressismo aquilo que é ditado por um espírito missionário. Uma perspectiva missionária não pode aceitar uma Igreja imóvel, fechada na defensiva. Espera uma Igreja em saída, que visa ao essencial, àquilo que mais atrai na mensagem cristã, fora de muitas proibições que são apenas o fruto de escolhas históricas ditadas por circunstâncias particulares. O jesuíta missionário se faz tudo para todos, para conquistar todos ao amor de Cristo.
A crônica das últimas semanas, com a viagem do Papa Francisco a Bagdá, dedicada como ele mesmo disse a São João Paulo II, lembrou a todos nós do poder profético de Woytjla, que, de forma alguma, quis “batizar” a guerra no Iraque. Nem em 1990-1991, nem em 2002, depois do 11 de setembro. João Paulo II então “salvou” a Igreja da identificação com o Ocidente e se afastou da tentativa de instrumentalização por parte dos pensadores que você analisa no seu livro: Michael Novak, em primeiro lugar, e depois também Weigel e Neuhaus…
Sim, o americanismo católico havia se proposto, nos anos 1990, como o intérprete oficial, nos EUA, da mensagem social de João Paulo II. Depois, em 2003, diante da guerra injustificada contra o Iraque, os pensadores teocon optaram fortemente pelo presidente Bush contra o papa. Os papistas eram americanistas, e a guerra mostrava com absoluta evidência onde o coração batia. Novak, Weigel, Neuhaus tentaram de todas as formas persuadir o Vaticano e Roma da bondade de uma guerra que teria como resultado milhares de mortes, a destruição de um país, o êxodo bíblico da histórica comunidade cristã iraquiana das terras de Nínive e da Babilônia. Um erro gravíssimo, nunca reconhecido, que, melhor do que qualquer outro argumento, permite evidenciar a ideologia teocon.
Naqueles discursos teocon, sempre se citava a Centesimus Annus, mas, na realidade, essa encíclica respeitava a tradição da doutrina social da Igreja, que continuava alertando para todos os riscos do capitalismo…
No meu livro, eu descrevo a operação Centesimus Annus. Quando João Paulo II a publicou em 1992, logo após a queda do comunismo, o papa pretendia propor um modelo social fundamentado na dignidade do trabalho. A encíclica não é nada terna em relação ao modelo capitalista, que ela critica e corrige de modo substancial, e isto em perfeita continuidade com a doutrina social dos seus antecessores. Com uma operação muito habilidosa, Novak, Neuhaus e Weigel não hesitam em se “apoderar” do texto, oferecendo uma hermenêutica claramente deformadora dele. A leitura deles é que o papa polonês teria oferecido, pela primeira vez na história da doutrina social, a plena reconciliação entre catolicismo e capitalismo, conciliação já oferecida por Novak no seu livro “O espírito do capitalismo democrático”, de 1982. O papa teria rompido, de maneira profunda, com a tradicional doutrina social. Incrivelmente, a hermenêutica neocon consegue se afirmar, e daí nasce a lenda da Centesimus Annus como uma encíclica do capitalismo. Graças a essa operação, o filão dos neoconservadores torna-se hegemônico na Igreja dos EUA e, depois, na europeia.
No seu ensaio, é muito interessante a referência à obra David Schindler, professor de Teologia Fundamental no Instituto João Paulo II de Washington e codiretor da revista Communio, que foi crucial na crítica cerrada aos ideólogos teocons, em defesa da linha Balthasar-De Lubac-Ratzinger. Uma obra pouco conhecida na Itália, até por ser pouco traduzida…
De meados dos anos 1980 a meados dos anos 1990, desenvolveu-se nos EUA um dos debates intelectuais mais interessantes do mundo católico. De um lado, temos o trio teocon, com Novak-Neuhaus-Weigel, e, de outro, David Schindler. As revistas Communio e 30 Days são o terreno da disputa. Tudo começa com uma entrevista que o cardeal Ratzinger concedeu a Lucio Brunelli em 1986 para a revista 30 Giorni. Nela, o cardeal estigmatizava o rosto burguês dos EUA de Reagan. Uma acusação que, do ponto de vista da nascente corrente teocon, não podia ser tolerada.
Na sua réplica, Weigel teoriza o rosto “cristão” dos valores estadunidenses e critica a perspectiva de Ratzinger, acusando-a de ceder à posição progressista. Nas suas respostas, Schindler objetaria que o dualismo teológico de Weigel, entre natural e sobrenatural, era diretamente responsável pela consagração do rosto burguês dos EUA. O catocapitalismo era o resultado de um processo de secularização teologicamente justificado. O tomista “agostiniano” Schindler objetava que o tomista “cartesiano” Weigel promovia um dualismo sistemático entre fé e história, de forma que a fé não era mais o fermento na massa, mas apenas o corolário de um mundo que caminhava sobre as próprias pernas e não precisava de nenhum “surplus”. A teologização do capitalismo e dos seus valores individualistas e não solidários, operada pelos neocon era o resultado necessário de uma posição teológica inadequada, que esquecia a novidade cristã na história.
Você sustenta uma tese, que eu me lembro que foi expressada pelo grande Augusto Del Noce pouco antes da sua morte: para João Paulo II e a Igreja, depois da queda do Muro de Berlim, o desafio passava a ser o de uma autêntica teologia da libertação sem marxismo: o caminho que Alberto Methol Ferré indicou e que se tornou o sonho do próprio Bergoglio quando estava em Buenos Aires…
O adversário histórico da Igreja, de 1945 em diante, foi o comunismo. A presença do adversário estimulava a doutrina social e o compromisso dos católicos no campo da justiça e da luta contra a pobreza. Com a queda do comunismo, esse compromisso se reduz, e a Igreja se fecha, se une intimamente a um clericalismo amante da ordem e do poder. Trata-se da “introversão eclesial” da qual Francisco fala muitas vezes. Por um lado, a Igreja se blinda diante do mundo da secularização, percebido como estranho e inimigo, e, por outro, se concentra nas próprias dinâmicas internas, esquecendo-se da missão e do compromisso social.
Por isso, Alberto Methol Ferré, o grande intelectual uruguaio amigo do cardeal Bergoglio, afirmaria em 2006, no seu livro-entrevista com Alver Metalli, “Il Papa e il filosofo”, que, “de certa forma, a ‘evaporação’ da teologia da libertação diminuiu o impulso do conjunto da Igreja latino-americana a assumir com coragem a condição dos pobres. Acho que a Igreja está pagando o preço por ter se libertado muito facilmente da teologia da libertação. A teologia da libertação deveria ter trazido a sua contribuição máxima após a queda do comunismo, e não se apagar com o marxismo. Hoje, é urgente compensar a sua ausência”.
Para Methol Ferrè, como você dizia, era necessária uma teologia da libertação sem marxismo. Os teocon, por outro lado, devem o seu sucesso em grande parte precisamente ao fato de que, na América Latina e no Leste Europeu, eles se tornaram os arautos de uma teologia do capitalismo. Assim, na oposição entre a teologia do capitalismo e a teologia do comunismo, a Igreja esqueceu a doutrina social, a mesma que o papa hoje repropõe e que provoca tanta reação em um mundo católico acostumado há anos a exaltar uma teologia do bem-estar que se esquece dos pobres do mundo.
www.ihu.unisinos.br, 31 Março 2021, Francisco e os conservadores católicos. O confronto narrado pelo prof. Borghesi (Riccardo Cristiano)
“Que Francisco também proponha uma teologia da libertação sem marxismo parece hoje evidente, mas se o pontificado de João Paulo II tem muito a dizer aos conservadores que o consideraram – justa ou injustamente, pouco importa – como o “seu papa”, Francisco tem muito dizer aos progressistas, que o escolheram – justa ou injustamente – como o ‘seu'”, escreve Riccardo Cristiano, em artigo publicado por Fomiche, 30-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Existe um livro para ler, comum se fosse um romance. E talvez seja um romance, como os Buddenbrooks ou os irmãos Karamazov, um grande afresco sobre uma grande família, sua história recente, traições e ciúmes, mal-entendidos e mentiras, divisões e conflitos: em suma, o sentido daquela história, daquela família. E daqueles que hoje são chamados a salvá-la.
Este livro foi escrito pelo professor Massimo Borghesi e intitula-se “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ‘ospedale da campo’” (“Francisco. A Igreja entre a ideologia conservadora católica e o ‘hospital de campanha’”, em tradução livre, Jaca Book, 2021). Depois de nos ajudar a conhecer e compreender o pensamento filosófico de Francisco, sua visão baseada na oposição polar que permite valorizar a tensão, Borghesi volta para nos explicar o catolicismo de Francisco no contexto de uma grande história. E de uma “inversão induzida”.
De fato, entre as figuras fundamentais destaca-se a de um teólogo estadunidense, Michael Novak, junto com outros obviamente. O sonho de muitos é se tornar papa sem sê-lo. É um vício que acompanha os jornalistas, uma esperança que cultivam os intérpretes, inclusive os teólogos, de todo pontificado. Novak é um dos que parece justamente ter conseguido e o professor Massimo Borghesi tem o grande mérito de nos explicar com precisão e detalhes o porquê.
Para ficar na esfera da resenha, jornalística e portanto superficial, podemos dizer que Novak conseguiu transformar uma encíclica de João Paulo II em seu oposto. Trata-se de uma encíclica muito importante, a “Centesimus annus”, que se seguiu ao colapso soviético, ou seja, do coletivismo e do marxismo praticado, o chamado “socialismo real”. Com um trabalho exegético inteiramente baseado em uma frase, que Borghesi destaca e apresenta, Novak conseguiu transformar aquela encíclica no que não era, mas naquilo que ele queria que fosse: a ruptura da doutrina social da Igreja, a aceitação do capitalismo, do liberalismo, da teoria do mercado como filho prodigioso, capaz de se autorregular. Não era assim: “A imagem do Estado e da sociedade proposta pela encíclica referia-se claramente ao Estado de Bem-estar social, modelo que Novak e os neoconservadores rejeitavam. Assim como não podiam deixar de rejeitar o que João Paulo II afirmava no terceiro capítulo dedicado ao Ano de 1989: ‘A crise do marxismo não elimina as situações de injustiça e de opressão no mundo, das quais o próprio marxismo, instrumentalizando-as, tirava alimento. Àqueles que hoje estão à procura de uma nova e autêntica teoria e práxis de libertação, a Igreja oferece não só a sua doutrina social e, de um modo geral, o seu ensinamento acerca da pessoa redimida em Cristo, mas também o seu empenhamento concreto no combate da marginalização e do sofrimento’. João Paulo II, portanto, esperava, após a queda do comunismo, a afirmação de uma autêntica teologia da libertação, livre do marxismo, mas não por isso menos comprometida com a luta pela justiça”. Parece exatamente a teologia de que fala Francisco.
Algumas linhas depois, o professor Borghesi nos lembra que na encíclica João Paulo II, em termos não muito diferentes daqueles que se leem em “Fratelli tutti” e que levaram muitos comentaristas a falar de um “papa comunista” referindo-se a Francisco, escrevia que “A Igreja ensina que a propriedade privada dos bens não é um direito absoluto” referindo-se a textos famosos como Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis. João Paulo II ia mais longe, via o “risco de uma idolatria do mercado” e definia “inaceitável a afirmação de que a derrota do chamado socialismo real deixe o capitalismo como único modelo de organização” e argumentava – talvez surpreendentemente para alguns – que embora redutiva e equivocada, a teoria comunista da alienação no mundo capitalista merece atenção.
A história da interpretação que inverteu esta encíclica pós-soviética, portanto muito importante para a orientação do mundo depois do muro, deveria ser clara para todos, visto que entrou tanto dentro de nós que nos levou a definir comunista e não “tradicionalista” a parte econômica de “Fratelli tutti”. Ao todo, João Paulo II retomava, atualizando-o, o pensamento tradicional da doutrina social da Igreja.
Este longo e fascinante capítulo sobre o início do “pontificado Novak” deve ser lido para entender o resto da história, algumas inovações reais acrescentadas com Bento XVI, mas também outros exageros persistentes em questões econômicas e internacionais, e também nas repercussões italianas. Mas a frase decisiva sobre o “pontificado Novak” é aquela que, em minha opinião, introduz uma semente niilista na “doutrina católica” transformada por Novak e seus colegas de percurso. É esta, imediatamente salientada e apresentada no livro, para nos fazer compreender, saber, citando Novak: “Não parece contrário ao Evangelho que todo ser humano lute, impelido à competição com seus semelhantes, para realizar todas as suas potencialidades”.
Ler o grande René Girard, sua teoria da violência mimética baseada justamente no instinto competitivo, e depois, graças a Massimo Borghesi, Novak, ajuda a entender muito. Principalmente se for seguido de forma correta esse passo, sempre relativo ao capitalismo-católico de Novak, ainda citado assim: “Ninguém havia valorizado tanto a pessoa individual [quanto o capitalismo]”. Borghesi comenta: “Ninguém, portanto nem mesmo a religião cristã, portanto. A fé e a ética cristãs não mudam a forma da economia, não desempenham um papel no disciplinamento dos ‘espíritos animais’, na promoção de formas de solidariedade e de equidade”. Assim entendemos por que Massimo Borghesi possa resumir: “A Igreja do mundo opulento se afasta profundamente daquela imersa no universo dos pobres […] Através de Novak o modelo ético-econômico da escola austríaca, oposta ao Welfare e à solidariedade em questões econômicas, rajado com tonalidades nietzschianas, tornava-se normativo para a visão católica de sociedade”. Por isso Francisco foi definido como comunista, herege e mais: porque a doutrina social da Igreja havia se transformado através de uma ideologia.
Que Francisco também proponha uma teologia da libertação sem marxismo parece hoje evidente, mas se o pontificado de João Paulo II tem muito a dizer aos conservadores que o consideraram – justa ou injustamente, pouco importa – como o “seu papa”, Francisco tem muito dizer aos progressistas, que o escolheram – justa ou injustamente – como o “seu”. Como a Centesimus annus “reorienta” a ideia de mundo após a queda do muro de Berlim, o primeiro documento pontifício de Francisco, a Evangelii Gaudium, redefine a ideia de mundo após o início do terceiro milênio e a crise da globalização. Aqui o livro é muito rico, pontual e assombroso pela síntese e precisão. Porque Bergoglio não se limita a cortar a grama sob os pés dos inversores da doutrina social da Igreja, esclarecendo que não faz sentido iludir-se que o mercado saiba se autorregular e que “as teorias da recaída favorável, que pressupõem que todo crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue produzir por si só uma maior equidade e inclusão social no mundo. Essa opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, expressa uma grosseira confiança e ingênua na bondade dos detentores do poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico vigente. Enquanto isso, os excluídos continuam a esperar”.
O texto se torna fascinante, às vezes até divertido ou angustiante. Os conservadores católicos entendem que corrigir ou derrubar Francisco será impossível, porque ele pretende esclarecer a inversão que operaram. Então eles atacam. E Novak oferece sua opinião: “Lendo a nova exortação apostólica do Papa Francisco e revisitando-a com aquela atenção particular à linguagem que um ouvido estadunidense pode ter, eu também fiquei impressionado, a princípio, com o preconceito e a falta de fundamento de cinco ou seis frases do pontífice”. É interessante notar que entre estas seja citada a necessidade de um retorno da economia e das finanças a uma ética a favor do ser humano. Palavras que Borghesi também explica com uma citação do ex-presidente do Senado Marcello Pera que eu havia perdido e que felizmente assim tive oportunidade de recuperar: “Mais do que ditaduras e golpes de estado militares, não lembro muito mais na América do Sul“. Marcello Pera foi um dos principais interlocutores do projeto cultural do cardeal Ruini, projeto em que provavelmente não levou teses robustas sobre a literatura sul-americana.
Lembrar daquele projeto e ler sobre Bergoglio que promovia as uniões civis para homossexuais na Argentina – sem direito à adoção – o faz parecer um gigante da fé não julgadora e dos direitos hoje, capaz de resolver questões que parecem insolúveis apenas porque prevalecem os extremismos opostos. Aqui é decisiva a citação da entrevista com o padre Antonio Spadaro em que Francesco explicava que as famosas questões éticas devem ser contextualizadas. Acredito que esse contexto seja o do discernimento, por um lado, e a rejeição da cultura do descarte, pela outro. Assim, é precisamente nessas páginas que emerge a lição de Pasolini que, em minha opinião, Francisco propõe aos “progressistas“.
Para Pasolini, de fato, a temporada dos direitos civis teve seu grande valor social em face do clerical-fascismo, isto é, como bloco de poder que o Concílio Vaticano II cancelou. Arquivada aquela ordem, surgiu um novo poder, o consumista. Diante desse novo poder que aceita toda condição privada, de separação, divisão, união, descarte, em nome do consumo, a prioridade para a mudança almejada permanece a mesma de antes? A tecnocracia sem alma de que fala o professor Borghesi relativa à questão ecológica e da Laudato si’ apreende plenamente o atraso de uma contestação parada em contestar um poder que já não existe, tornando-se inconscientemente aliada do novo, com o trâmite do relativismo. “Se não existem verdades objetivas ou princípios estáveis, além da satisfação das próprias aspirações e das necessidades imediatas, que limites podem ter o tráfico de seres humanos, o crime organizado, o tráfico de drogas, o comércio de diamantes de sangue e de peles de animais em perigo de extinção? Não é a mesma cultura relativista que justifica a compra dos órgãos dos pobres com o objetivo de vendê-los ou utilizá-los para a experimentação, ou o descarte de crianças por não atenderem aos desejos dos seus pais?”.
O papa do discernimento nos obriga a pensar. “É precisamente este paradigma tecnocrático que nos faz entender o que nos diz a citação do professor Massimo Faggioli: ‘Devemos nos perguntar hoje se a igreja estabelecida talvez não seja um dos poucos baluartes restantes contra a destruição do estado de bem-estar social, o turbo-capitalismo, a individualização radical da vida humana’”.
Seguem páginas muito claras e profundas sobre muitos aspectos do pontificado de Jorge Mario Bergoglio, em particular sobre sua viagem pela América e sobre a relação especial com Paulo VI. Francisco e a sua Igreja em saída nascem da ideia de uma Igreja missionária e, por isso, profundamente ligada à exortação apostólica Evangelii Nuntiandi: “É na exortação apostólica do Papa Montini que Bergoglio podia encontrar a síntese antinômica e equilibrada entre os dois momentos da presença do cristão no mundo: aquela entre evangelização e promoção humana. Dois momentos igualmente distantes da perspectiva conservadora católica para a qual a missão, longe de ser anúncio do kerygma e testemunho, é antes de tudo uma defesa militante dos valores e a promoção humana coincide com o aumento da sociedade do bem-estar”.
Se não se entende isso, não se entende Bergoglio. A esperança é que agora chegue o livro que ainda falta, aquele sobre a linguagem poética de Francisco. Talvez por obra do mesmo autor.
www.ihu.unisinos.br, 07 Abril 2021, Por que Francisco não apoia os “teocon” estadunidenses. Entrevista com Massimo Borghesi (Francesco Gnagni)
“O caminho da misericórdia, que Francisco indica à Igreja contemporânea, não se contrapõe ao caminho da Verdade como acusam os teocons (cristãos conservadores) e os tradicionalistas. Para o Papa, a Misericórdia é, hoje, o caminho para a Verdade”. Conversa da Formiche.net com o filósofo Massimo Borghesi, autor de “Francisco: A Igreja entre a ideologia teocon e hospital de campanha” (em tradução livre, Jaca Book).
A entrevista é de Francesco Gnagni Porpora, publicada por Formiche, 06-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com sua ascensão ao trono papal, o Papa Francisco herdou uma condição, aquela da Igreja Católica, severamente testada tanto pelos escândalos do clero como por uma secularização agressiva que encontrou expressão em uma verdadeira guerra cultural e midiática, e que em muitos aspectos continua até hoje. Para entender melhor todo o panorama subjacente ao que aconteceu naquele 13 de março de 2013, porém, precisamos voltar no tempo, pelo menos até a queda do Muro de Berlim. Naqueles anos, de fato, nos Estados Unidos estava se delineando uma ligação particular entre espírito estadunidense, batalhas éticas e pensamento católico, que se tornaria predominante em alguns aspectos e cuja direção é governada por um grupo de formadores de opinião que o filósofo Massimo Borghesi, professor catedrático de Filosofia Moral do Departamento de Filosofia, Ciências Sociais, Humanas e Educação da Universidade de Perugia, escolheu colocar sob os holofotes para a elaboração de sua última obra intelectual, “Francesco: La Chiesa tra ideologia teocon e ospedale da campo” (Jaca Book,, 272 p.), sobre a qual falou ao Formiche.net.
Eis a entrevista.
Professor, em seu livro publicado em 2017 pela Jaca Book, “Jorge Mario Bergoglio: Una biografia intellettuale” (aqui a resenha de Formiche.net) tentou destacar a estrutura fundamental do pensamento filosófico do Papa Francisco, mostrando como o seu componente propriamente original, da dialética dos opostos, insere-se, sem dúvida, na linha tradicional da doutrina católica. Mesmo assim, muitos ainda têm dificuldades para entender esta passagem, quase inexplicavelmente. Ou existe uma explicação, e você tentou colocá-la em preto no branco em seu último livro…
Por parte dos jornalistas existe, de fato, uma verdadeira desatenção à “biografia intelectual” do Papa, quase como se ela não fosse importante para compreender as linhas do pontificado. Nisso ainda são afetados pelo preconceito europeu de que aquilo que vem da América Latina não pode ter grande profundidade cultural. Eles estão errados, e no livro que você cita isso é amplamente demonstrado. O cerne do pensamento “católico” do papa deriva de seu encontro ideal com o modelo da “polaridade” da vida e da sociedade indicado por Romano Guardini. Segundo ele, a Igreja aparece como o lugar do “complexio oppositorum“. É esse modelo que permite a Francisco escapar do maniqueísmo político-religioso que marcou o mundo a partir de 11 de setembro de 2001. Um maniqueísmo que contagiou também a Igreja Católica que, principalmente nos Estados Unidos, às vezes parece se confundir com o fundamentalismo evangélico.
Com a formação da orientação teo-conservadora, nasce uma corrente que terá grande peso no mundo católico EUA. Aquela que você chama, na linha da definição do jornalista Enzo Bettiza de “cato-comunismo”, de “cato-capitalismo”. Que também estará destinada a influenciar uma visão do catolicismo mundial, que repercute até na Itália através de um projeto eclesial apoiado pelos chamados “ateus devotos” liderados por Marcello Pera, a quem você dedica bastante espaço no livro.
A corrente dos Catholic Neoconservative, liderada por Novak, Neuhaus, Weigel, Sirico, toma forma nos EUA sob a presidência de Reagan e depois se estabiliza sob a presidência de Bush jr. realizando uma verdadeira hegemonia na Igreja norte-americana e, consequentemente, no catolicismo mundial. Representa uma reação ao progressismo ideológico, individualista e libertário que caracterizou a nova esquerda estadunidense a partir dos anos 1970. Movendo-se para a direita, um grupo de intelectuais católicos provenientes da esquerda dá forma a uma nova versão do “americanismo católico” que se focaliza sobre duas diretrizes: adesão total do catolicismo ao modelo capitalista e cultural wars, ou seja, batalhas culturais para defender um grupo restrito de valores declarados irrenunciáveis. Entre eles, em primeiro lugar, a defesa dos nascituros. Assim nasceu uma síntese singular entre uma orientação pró-vida e uma apologia ao capitalismo. Singular porque não reflete no fato de que o próprio espírito do capitalismo justifica a mentalidade sacrificial que está por trás do “direito” ao aborto. Na Itália, a corrente “teocon” se afirma nas duas décadas que vão de 1990 até a primeira década do novo milênio. O think-tank de referência será a Fundação Magna Carta de Marcello Pera enquanto o jornal de referência será o Il Foglio de Giuliano Ferrara. O objetivo era juntar luta ética sobre “valores não negociáveis”, defesa do Ocidente “cristão” contra relativismo e Islã, plena solidariedade com a guerra estadunidense contra o Iraque. O objetivo era criar um bloco liberal-conservador-católico de molde anglo-saxão. A Igreja daquela época, como documento na obra, não será insensível a esse projeto. O fim do projeto, devido ao desastroso desfecho da guerra do Iraque e da crise do capitalismo mundial, não impede que os principais oponentes do atual pontificado em nosso país venham quase todos do mundo neocon.
No centro de tudo isso está o pensamento social da Igreja, puxado de um lado ou de outro. Acabada a era da teologia da libertação e consumada a queda do Muro de Berlim, a cristandade lhe pareceu ter sido engaiolada por uma nova “teologia do capitalismo”, cujo casus belli será tirado, habilmente, de uma releitura tendenciosa da Centesimus Annus, que na realidade, tinha uma mensagem totalmente diferente.
A operação Centesimus Annus é aquela que permite aos católicos neoconservadores tomar a ponte de comando na Igreja norte-americana. A encíclica de João Paulo II, publicada em 1991 em concomitância com a queda do comunismo soviético, de forma alguma favorecia a celebração do capitalismo. Um capitalismo que então assumiu cada vez mais uma face financeira, desprovida de freios inibidores, que vai levar o mundo à beira do colapso com o caso do Lehman Brothers em 2008. A Centesimus annus se mostrava muito crítica à ideia de um capitalismo sem freios e repropunha de maneira clara a tradicional doutrina social da Igreja sobre o assunto. A operação ousada e arranjada por Novak, Neuhaus, Weigel, seria aquela de apresentar um documento crítico ao capitalismo “puro” como uma sua apologia. Com a Centesimus annus, a Igreja teria finalmente abandonado sua desconfiança no liberalismo econômico e teria se adaptado aos padrões do mundo europeu ocidental. João Paulo II se tornava o cantor do modelo estadunidense com uma ruptura em relação à reflexão de seus antecessores. Descrevo como os neoconservadores tiveram sucesso nessa empreitada em meu livro. De fato, por meio dessa leitura eles se imporão como intérpretes, dentro da Igreja, da linha de João Paulo II. Sua liderança no mundo eclesial EUA passa por sua deformação da Centesimus annus. Graças a ela, o cato-capitalismo podia se tornar hegemônico.
No meio, a dramática passagem da guerra no Iraque. Diante da condenação de Wojtyla à doutrina da “guerra justa”, os pensadores católicos estadunidenses foram chamados a decidir que lado tomar. Eles mostraram, nesta passagem histórica de enorme importância, qual era a causa que mais lhes importava, se aquela de Roma ou a de Washington. O que resultou?
Resultou a verdadeira face do americanismo católico, aquela que permanecera oculta pela leitura manipuladora da Centesimus annus. O conflito traz à tona a face ideológica dos neoconservadores. Nascidos com a intenção de reconciliar catolicismo e espírito estadunidense, eles optam, na verdade, pelo primado dos EUA sobre a Igreja. Diante das provas manifestamente falsas com que o governo estadunidense tentava justificar a entrada em guerra contra o Iraque de Saddam Hussein, os teocons alinharam-se ao lado de Bush contra João Paulo II que, idoso e doente, permanece firme na oposição a um conflito que não oferecer razões razoáveis e certas. O tempo mostraria depois o quanto Roma estava certa. A guerra no Iraque causou centenas de milhares de mortes, a devastação do país, o êxodo bíblico da histórica comunidade cristã das terras de Nínive. Os “teocons” nunca pediram desculpa por seu trágico erro.
No final da temporada woytiliana, Bento XVI foi eleito e imediatamente se tentou cooptá-lo pelas mesmas componentes culturais. Mas a Caritas in Veritate não agradaria de forma alguma o mundo dos intelectuais que ela delineia, e depois de sua publicação tentou-se culpar a resistência interna por parte da Cúria Romana. Mas depois com a chegada do Papa Francisco e com as três encíclicas bergoglianas veio a verdadeira ruptura, que deu origem à dura oposição ao atual pontificado que vemos há anos. Mas o conteúdo das mesmas não difere muito daqueles das encíclicas dos papas anteriores. Então, de onde surge esse ódio radical contra Francisco?
Sim, isso sobre a oposição dos teocons a Bento XVI, assim como a João Paulo II, é uma página pouco conhecida. Na verdade, continua-se com a leitura unilateral de que o Papa Ratzinger teria sido um peão nas mãos dos teocons. Na realidade, os teocons tentam, após o rompimento com João Paulo II sobre a guerra, propor novamente seu projeto hegemônico sobre a Igreja relançando-o sobre o papado de Bento XVI. No entanto, a Caritas in veritate, a encíclica social do Papa de 2009, não agrada a eles. Tanto Novak quanto Weigel são críticos do documento, temem que depois da Centesimus annus volte-se novamente à perspectiva de “esquerda” de Paulo VI. Weigel chega a escrever um artigo, “Caritas in Veritate in Gold and Red“, no qual separa, com o bisturi, a parte “áurea” do documento, que teria sido escrita pelo próprio Bento XVI, daquela “vermelha” elaborada em sua opinião pela Pontifícia Comissão “Iustitia et Pax“. A primeira seria correta, a segunda não. Com isso, o método dos teocons torna-se manifesto. Os documentos do magistério são aceitos apenas pela parte que está de acordo com a ideologia teocon, o restante é rejeitado. A novidade com Francisco é que essa estratégia não funciona mais. De fato, todo o pontificado de Francisco constitui um requestionamento consciente do modelo teológico-político que condicionou a consciência eclesial há trinta anos. Um modelo de direita que substituiu o modelo de esquerda dominante na década de 1970. Diante desse requestionamento, a estratégia dos teocons é separar Francisco de seus predecessores, “isolá-lo”, mas, como demonstro em meu livro, isso é uma mistificação.
E assim chegamos à atualidade. Depois de retratar Trump como uma espécie de constantiniano anti-Bergoglio, defensor dos valores cristãos contra um catolicismo decadente, você destaca o fato de que Biden é o segundo presidente católico dos Estados Unidos, e o descreve como herdeiro da temporada kennediana. No entanto, questões como do aborto continuam sendo um importante “obstáculo”, como você destaca no livro. Se na origem do movimento teocon está a sentença histórica “Roe vs. Wade” sobre o aborto, hoje nos Estados Unidos a oposição republicana, viva e aguerrida em cada um dos estados, está abraçando a ideia de levar a lei sobre o aborto à Suprema Corte, que se tornou uma maioria pró-vida durante a presidência de Trump. Isso representaria uma conquista histórica para a própria componente neoconservadora e para os bispos estadunidenses que a patrocinam.
Infelizmente, o obstáculo do aborto é real. A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1973 representa uma grave ruptura para a Igreja Católica estadunidense entre consciência religiosa e nação. Os católicos que estavam na fila da frente do Partido Democrata na década de 1960 são empurrados cada vez mais para a direita nas fileiras do Partido Republicano que, habilmente, coloca-se como interlocutor. Com o passar dos anos, essa lacuna tem se acentuado cada vez mais entre os defensores do direito ao aborto como um direito constitucional e os militantes pró-vida que concentram todo o testemunho público sobre um único valor. Para os católicos, isso significou esquecer a doutrina social da Igreja e a perspectiva do testemunho evangélico no mundo secularizado que transcende os alinhamentos políticos.
Evangelização e promoção humana, a dupla polar que está no centro da Evangelii nuntiandi de Paulo VI se perderam nas ruas. Em sua recuperação está o projeto de Francisco que quer empurrar uma “Igreja imóvel”, bloqueada por um esquema maniqueísta. O Papa é decididamente contra o aborto. A este respeito, ele usou palavras de condenação que os pontífices anteriores não usaram. Ele não aceita, entretanto, limitar o empenho do cristão no mundo apenas no ponto reduzido dos pró-vida. A luta contra o aborto, por mais importante que seja, deve ser colocada dentro da proteção e a defesa de tudo o que é “frágil”. Nesta tutela da fragilidade reside uma tarefa essencial para a democracia.
Em tudo isso, a resposta de Francisco, ou seja, a orientação de seu pontificado missionário, você a identifica em sua “teologia da ternura”, que por sua vez tira sua força vital do pensamento “tensionador” que une coração e intelecto, valorizando assim a polaridade do real, e que se origina na formação inaciana e jesuíta de Bergoglio. O convite do Papa, como para João Paulo II, é para abrir as portas a Cristo, com a diferença que se o santo polonês se dirigia para fora da Igreja, o convite do Papa argentino olha para dentro dela. Contra a temporada teocon, você escreve, que terminou no “teo-populismo”, a Igreja é chamada a redescobrir o significado da complexio oppositurum no pensamento da reconciliação. “Toda ideologia é uma pedra de tropeço”, conclui, e “a Igreja não precisa de inimigos para viver, mas seu propósito é comunicar a mansa humanidade do Redentor”.
O caminho da misericórdia, que Francisco aponta para a Igreja contemporânea, não se contrapõe ao caminho da verdade como acusam teocons e tradicionalistas. Para o papa, a misericórdia é, hoje, o caminho para a verdade. Eu insisto sobre o hoje. Bento XVI, o papa emérito, explica o porquê em uma entrevista de 2016 com o padre Jacques Servais. Para Bento XVI, o fio vermelho que une os três últimos papas, ele, João Paulo II e Francisco, é a escolha pelo primado da misericórdia. E isso não só porque é o caminho evangélico por excelência, mas também porque o homem contemporâneo, dobrando por um mal que não consegue carregar nem confessar, se encontra na figura do filho pródigo da parábola. O caminho da ternura para Francisco não é a via do bom mocismo, que tudo perdoa porque não sabe mais reconhecer o mal, mas é a única via mediante a qual é possível reconhecê-lo. Para confessar os pecados, é preciso já estar idealmente abraçados. A misericórdia está no início e não apenas no fim. Isso é o que o conservadorismo religioso-ideológico, duro como uma pedra, não está em condições de entender.